Valter Vinagre: “É-me muito fácil pegar na sociedade e cortá-la a meio.”

Pensa de olho colado à objetiva, bisturi de infinitas viagens ao âmago do Portugal que o inquieta a ponto de o incomodar… tanto que fez da paisagem casa e encontrou na fotografia a vista para sociedade que sonha com a mesma rebeldia dos anos 70. Tudo por culpa, ou graças à falta de jeito para a escrita. Desde montar manilhas a varrer ruas, fez de tudo um pouco até ao dia em que a esposa lhe emprestou uma máquina e, desde então, não mais a largou.

Vive dividido entre Lisboa, onde tem a família, e Idanha-a-Nova, que lhe dá a solidão necessária à lucidez das ideias. Conseguimos apanhá-lo numa dessas pontes que continua a fazer fora das auto-estradas para poder sorver o território. Falámos das três exposições com que começou o ano e tirámos o retrato ao fotógrafo que adora cortar a sociedade ao meio. No final, só faltou ajuda para cortar a conversa. Valter Vinagre, 2019. Sem filtros.

 

Entrou em janeiro com 3 exposições. Como é que isto acontece?

É um aviso à navegação. (risos) Sou um desastre a gerir agendas. Tenho um sítio onde aparentemente aponto tudo, mas vou lá ver e nada. Desde setembro e até ao princípio de dezembro, quando dei por mim, tinha três exposições no mesmo mês.

Na Bienal de Vila Franca, participa com fotografias da sua mais recente série, “Homem morto passou aqui”. Em que é que consiste este trabalho?

Tem a ver com uma coisa a que prosaicamente se chama “Invasões Francesas e guerras peninsulares” e em relação à qual há uma quase total ausência de conhecimento generalizada e de amnésia, que foi o que me levou a fazer o trabalho. Quando muito, fala-se do Buçaco, das linhas de Torres e do Vimeiro. Ah, e da ponte das Barcas. Em termos económicos e demográficos, foi uma enorme tragédia para o país, um morticínio. O país ficou praticamente queimado. E é daquelas coisas em que não há culpados. Essa confluência de falhas pôs-me a pensar que a fotografia é uma forma de pôr as pessoas a refletir, utilizando uma das áreas da fotografia talvez mais ingratas, que é a paisagem.

Ingrata em que sentido?

Na fotografia contemporânea, vemos sobretudo a paisagem urbana. Os não-lugares, as periferias… Hoje é uma paisagem mais humana, mais intimista e em que há muito retrato, sendo a paisagem de “campo aberto” um pouco mal amada. Ou se vai para o “bonitinho” ou para o feio e, para mim, as coisas não são nem uma coisa nem outra. Neste trabalho, se as coisas importantes estavam a acontecer num sítio onde estava a chover, estava a chover. Se era meio-dia, era meio-dia. Essas paisagens não têm essa espera pelo momento mágico, deliberado, da luz de que eu mais gosto ou que fica muito bem.

Portanto, é um registo mais documental… De onde surge o título?

Ultimamente, ou provoco os títulos ou tropeço neles. Neste caso, estava a falar com o pároco da minha aldeia, Avelãs de Caminho, que me disse  existirem, nos livros de registos da paróquia, uma parte em que, referindo-se a pessoas mortas durante a batalha, estaria escrito -“Estes homens mortos passaram aqui”. Em Avelãs, teria existido um Hospital de Sangue durante a batalha do Buçaco.

Em paralelo, temos também “Beira Baixa sob Perspetiva”. Uma vez mais, o território.

É uma encomenda – deliciosa – porque vem em liberdade, vem da Comunidade Intermunicipal da Beira Baixa e Interior. Por proposta do município de Idanha-a-Nova os restantes municípios aceitaram levar a cabo um projeto que assentasse nos seus territórios e uma coleção de fotografia comum. Neste projeto, em que trabalhamos dois fotógrafos e um músico (eu o Pedro Martins e o músico Filipe Faria), decidi fazer retratos de pessoas nos vários concelhos que “representassem” a tradição, música, mundo rural, etc. e ainda paisagem. A esta série dei o nome de “7 retratos. 7 paisagens enquanto retrato”. Porque as paisagens para mim também são cortes, como se fossem um retrato meu. Uma corte numa paisagem sem a identificar obriga a toda a gente a pensar o território e a situar-se. Uma coisa que passamos e não vemos, se calhar, se levar um corte, passamos a ver.

Sem Título #12, da série 7retratos.7paisagens enquanto retratos. Podemos vê-la em Beira Baixa sob perspetiva, de 18 de janeiro a 31 de março, na Galeria Posto de Turismo de Oleiros.

 

No fundo, é estar de fora e obrigar as pessoas a estarem dentro…

Com esta minha abordagem quis convocar os municípios “obrigando-os” a olhar para dentro. Este trabalho mostrou-me o quão mal eu conhecia aquela região.

2019 começa também “Sob o Signo da Lua”, centrado no Boom Festival. O Valter diz que todos os projetos têm um fim, mas este levou 15 anos para ser dado como concluído.

Eu fui dois anos ao Boom em que não fotografei. Só fiquei a ver. E sabia que ia precisar de tempo. Fotografei de 2002 a 2016. Em 2014, dei o projeto como concluído e fui desafiado a editá-lo, mas, mais tarde, quando tornei a olhar para o trabalho, senti falta de retratos, e disse “Eh, pá, isto não está pronto, tenho de lá voltar.” E, portanto, voltei em 2016 só para fotografar aquilo que queria.

O que é que o fez sentir que já era altura de sair da festa?

Eu estive quase sempre de fora da festa. Quando se é fotógrafo, estamos num meio, mas não fazemos parte dele.

Mesmo num ambiente marcadamente sensual e psicadélico, o fotógrafo não cede à tentação de se imiscuir que o homem possa ter?

Fosse ali ou um cenário de guerra, seria igual. Estou a pensar com uma objetiva colada a um olho. E esse tempo foi-me dando inquietações, mas também certezas de qual era a resposta que eu queria. No fundo, vi que o que leva tanta gente a ir… é como estar numa missa, num comício ou noutra coisa qualquer. É estar num sítio onde nos sentimos bem e onde, dentro de um quadro de liberdade, cumprimos a nossa utopia. Como se fosse uma cidade. Em termos de festivais, só conheço um que tem a mesma resposta, que é a Festa do Avante. Mas eu não gosto de direcionar as pessoas a um caminho. A partir do momento em que se põe aquilo num livro ou numa parede, o melhor que pode acontecer é cada um tirar dali a história que quiser. Até pode ser contraditória com a minha versão, porque, enquanto autor, eu faço os projetos porque eles me incomodam, e por isso, só estou a responder a mim, mesmo no caso das encomendas, onde há uma direção.

Dividiu o livro em 3 secções, Hipnos, Eros e Machia, nomes gregos para “sono”, “amor” e “combate”, respetivamente. Que fase destas luas o que fascinou mais?

Muitas das imagens que estão em cada secção podiam estar em qualquer uma das outras. Obviamente que aquelas que respondem mais à Hipnos, que vem de “hipnose”, pode-se dar a ver quem está “fora” sem se ser agressivo com quem está “fora”. Na questão do Eros, não há muita volta a dar. É a beleza, mas não é só a beleza dos corpos. E depois há o combate, que é a procura de tudo, e que congrega mais a resposta à pergunta que eu me fiz: “Caraças, por que razão é que se vai sempre, por que razão é que, em vez de ir à Igreja, estou nesta religião a que chamo ambiente, vegan e uma série de coisas?”

Em “Posto de trabalho”, deu-nos o seu olhar sobre o dia e a noite.

Não é a noite; é a falta de luz.

Mas qual é o seu tempo por excelência?

Tanto pode ser a luz crua como quando ela é praticamente inexistente.

Do tempo ao espaço, a inclinação para a periferia é uma constante na sua obra. Porquê essa predileção?

Existe uma predileção por uma coisa que se chama Portugal. É o país que eu penso.

 

“É através da imagem que eu vou continuar a minha luta.”

 

A sua opção pela fotografia advém “da dor de não conseguir escrever”.

Que continua. Detesto escrever. Dói-me muito.

Mas já conseguiu encontrar na crítica alguém que leia nas suas imagens aquilo que gostaria de escrever sobre elas?

Desse ponto de vista, tenho tido muita sorte. Quando começaram a sair críticas em relação ao meu trabalho, eu acabava de as ler e dizia “Porra, na mouche!”. Críticas escritas por quem não me conhecia feitas a partir do que tinham à sua frente. Foi um enorme incentivo para mim. Em 2006, houve um jornalista que fez uma pequena biografia minha para o “Anamnese” sem me conhecer, e às vezes ainda a uso. Ele escreveu a partir daquilo que viu. Quando alguém faz isso, acho que sou um sortudo.

Antes de se tornar fotógrafo, teve inúmeras profissões: passou pela marinha, foi metalúrgico, esteve numa fábrica de fazer manilhas, experimentou a construção civil, varreu ruas, trabalhou como animador sociocultural e jornalista… Esta versatilidade fez de si melhor fotógrafo?

Fez de mim melhor fotógrafo e sobretudo fez de mim o fotógrafo que eu sou. Com uma carga muitas vezes quase objetiva. E por toda a componente partidária que eu tive, de luta sindical, Vilar de Mouros nos anos 70, e todas as patifarias… (risos) É-me muito fácil pegar na sociedade e cortá-la a meio, quase como se tivesse um bisturi para a dissecar. E digamos que, ao passar para este lado, é através da imagem que eu vou continuar a minha luta.

Continua a ser um rebelde, mas com causa.

Um rebelde com causas. A maior é a luta pela dignidade: é a que nos leva a todas as outras.

Como é que vê o papel da fotografia nesta era onde a partilha da imagem é instantânea e carregada de filtros, e o excesso de informação reserva pouco espaço para a contemplação?

Quando eu produzo imagens, elas têm um lugar e uma função. É evidente que hoje, com o digital, assistimos de uma maneira louca à produção. Mas, se nos lembrarmos de um dia a Kodak inventou aquela maquinha que era “carregue no botão e nós tratamos do resto”, quem tinha dinheiro fazia o mesmo. A história a mim não me assusta. Caso contrário, ainda estaríamos no papel salgado… Se eu sinto que, enquanto fotógrafo, aquela ferramenta me vai servir, eu vou usá-la. Agora, o que acontece é que as pessoas estão quase num período niilista outra vez, estão tão sozinhas, perdidas numa sociedade de consumo que diariamente as agride com publicidade e milhões de imagens, que reagem da mesma maneira que são agredidas: vão fazendo cada vez mais.

O que é que o incomoda agora?

Tenho dois projetos no ar, mas ainda estão em maturação. Feitos cá. Posso dizer que voltarei aos temas da dualidade Eu/Outro.

Tem noção do impacto que “Posto de trabalho” está a ter na sociedade e na política portuguesas?

Tenho, em primeiro lugar, por aquilo que as pessoas me dizem quando me encontram. Por outro lado, desde que realizei a exposição e saiu o livro, já dei uma vintena de conferências, em universidades e em grupos de trabalho nesta área. Quis fugir disso, mas apercebi-me que me estava a enganar a mim mesmo. (risos)

Sem título #20, da série Posto de trabalho. Este olhar sobre a prostituição à beira da estrada valeu a Valter Vinagre o Prémio Autores, da Sociedade Portuguesa de Autores em 2006.

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